Era uma vez um país

Era um país de gente metida

que calava a fome e o frio

metidos até à medula

gente que se benzia e torcia

da roca fios com que se cobrir

era um país de meninos rugosos

chupando cigarros

um país de meninas tristes

que pediam licença para sair a brincar

porque nesse país seriíssimo

brincava-se até sair nova Lei

e depois acabava-se a brincadeira

era um país que ria pouco

e chorava muito

E certo dia, sem que ninguém disso desse conta

(e todos nesse país prestavam contas)

deu-lhe uma apoplexia

e do país sobrou

uma respiração rouca e o sangue viscoso

mal deu tempo de vestir preto

e contar esta história

Adeodatus

Repara bem, Teotónio,

no que as pessoas em volta apresentam

raras vezes é de facto uma apresentação

dirás delas o que delas desconhecem

em ruptura automática com o desejo e a pulsão

e tudo o mais que a sociedade constrói

Repara bem, Teotónio,

que também isto é falso

é um gesto falso, mais do que uma voz

entre tantas mais

é um gesto mentiroso

uma mise-en-scène de minhas mãos

Tão frias, repara bem, Teotónio

Tão frias estas mãos